É a terceira vez que me sento na mesa e tento escrever algo que seja minimamente tragável e não consigo. Estamos há dois meses em casa esperando a quarentena começar de fato.
Dada a situação, fiz meu trajeto comum de acordar, ir ao banheiro e pegar o café. Por alguma razão o padeiro passa depois das 9h, quando já fiz questão de beliscar as notícias do dia.
Sentei na mesa e pensei no que escrever. Minha primeira concepção era falar sobre o assassinato de mais um jovem no Rio, rapaz que aliás foi agraciado com o mesmo nome que eu. Não evoco ter ouvido falar sobre uma criança branca que estava brincando dentro de casa e acabou baleada em uma operação policial, entretanto jovens negros sempre padecem por esse motivo e tudo é tratado como ordinário.
Penso no pai e na mãe do garoto lendo o que escrevo e me sinto inibido. Afinal, como seria capaz de transcrever no papel o sentimento insustentável que passam? Com isso na cabeça resolvi fumar um cigarro no portão de casa. Ouvi minha mãe falando algo e já pensei em como uma cena cotidiana dessas pode ser letal, afinal, Jenifer foi afligida assim e faleceu no auge de seus 11 anos.
Voltei para dentro e decidi parar de pensar nisso. Abri o Twitter e vi que na primeira vez em que o número de mortes diárias pelo Covid-19 ultrapassa mil, nosso presidente nos brindou com uma piada. ‘Quem é de direita toma cloroquina, e quem é de esquerda toma o quê?’. Preferi me abster pois já estava exasperado demais, no entanto fiquei com receio do Felipe Neto me difamar.
Aliás, acompanhei toda a histórica entrevista do influencer no Roda Viva e confesso que me surpreendi. Não que eu esteja apto a julgar a vida alheia mas penso que ele tem uma cabeça boa para alguém com o poder de pregar para um quarto do país. Sendo assim, chamei um amigo e puxei papo sobre a cloroquina e ouvi um ‘pode liberar, só toma quem quiser’.
Mil pessoas estão perecendo por dia ao mesmo tempo em que cidadãos protestam pelo direito de se infectar. Enquanto isso o presidente troça com tudo, manda jornalista calar a boca e troca superintendentes.
Voltei para o computador e tentei escrever novamente. A história de João Pedro não sai da minha cabeça mas não sei como articular sobre ela. Entro um pouco nas redes sociais e vejo que Regina Duarte não é mais Secretária de Cultura. Não sei se fico satisfeito ou angustiado, afinal, sempre pode ficar pior.
Enquanto isso boa parte da população vai vivendo comumente, desprezando toda essa insensatez. E eu fico aqui, tentando escrever algo que seja minimamente tragável, sempre lastimando sobre os últimos acontecimentos e enunciando que chegamos ao fundo do poço. Atualmente, falar que chegamos ao fundo do poço é otimismo.
Gostou do texto? Sou dono da Brotherline e tenho um livro publicado chamado ‘desamparo’. Nele há poesias sobre existencialismo e ele foi escrito na época em que tive meu diagnóstico. Caso você possa e queira, compre a versão física aqui ou o e-book na Amazon. Obrigado!